Projeto de Lei nº 4/2025: As doações e os impactos das mudanças sugeridas no contexto da Reforma do Código Civil
Seguindo o cronograma de nossa série sobre o Projeto de Lei nº 4/2025, que dispõe sobre a atualização do Código Civil e os principais impactos sobre o Direito de Família e Sucessões, trataremos a seguir das mudanças propostas na esfera das doações, importante mecanismo utilizado em planejamento patrimonial e sucessório. Para acesso ao primeiro texto de nossa série, clique aqui.
- Doações de Ascendentes a Descendentes
Visando maior eficiência sucessória e tributária, muitas famílias decidem antecipar a transmissão de seu patrimônio em vida a seus descendentes.
O Código Civil atual prevê em seu art. 544 que, salvo disposição expressa em sentido contrário, uma doação de ascendente a descendente, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe a título de herança, facultada a inclusão de cláusula expressa que dispense o donatário de trazer à colação o bem doado, quando do falecimento do dador.
Sobre o tema, o PL pretende alterar a redação do art. 544, primeiramente para suprimir a referência ao cônjuge, uma vez que, como se verá nos próximos textos na nossa série, tanto este como o convivente deixaram de concorrer à legítima juntamente com descendentes e ascendentes. Além disso, a redação do art. 544 é alterada para evidenciar que a doação de ascendente a descendente, no silêncio, importa adiantamento da porção legítima à qual faz jus o donatário descendente, observadas as regras para viabilizar a dispensa de colação.
As formas para tal dispensa ulterior de colação são flexibilizadas, facultando-se ao doador não somente se valer do próprio instrumento de doação ou do testamento para tanto, como também de declaração própria, em escritura pública (e não instrumento particular, por exemplo) subsequente ao ato.
Feita doação de ascendente a descendente como antecipação da porção legítima do patrimônio do doador – seguindo, assim, a regra geral –, o PL retoma o critério da colação computando-se o valor do bem doado ao tempo da liberalidade, determinando, ainda, que este deverá ser corrigido monetariamente até a data da abertura da sucessão. Apenas em caso de não haver bens suficientes no acervo hereditário para igualar as legítimas os bens em espécie serão colacionados e, caso o donatário não mais os detenha, então o seu valor deverá ser reposto.
Em qualquer caso, expurgam-se as benfeitorias necessárias e úteis realizadas, assim como os acrescimentos decorrentes do trabalho do donatário, que somente a este pertencerão.
- Doações inoficiosas
Independentemente se transmitido a descendente ou a outrem, ao doador também é vedado realizar doações cujo valor exceda a porção disponível de seu patrimônio, sob pena da liberalidade ser vista como inoficiosa. Nesse sentido é a dicção do art. 549 de nosso atual Código Civil.
Dentre as mudanças trazidas pelo PL, destaca-se que a doação inoficiosa deixa de ser referida como nula, passando a ser referida na proposta como meramente ineficaz. A alteração, se passar, põe fim à discussão quanto aos efeitos da doação inoficiosa, que já causaram substancial frisson no Poder Judiciário.
Para além, o PL traz regramento específico aplicável à apuração da doação inoficiosa – em grande parte, inspirado na jurisprudência dominante atual –, prevendo de forma expressa que o cálculo da parte restituída considerará o valor nominal do excesso ao tempo da liberalidade, corrigido monetariamente até a data da restituição, independentemente da natureza do ativo doado. Em caso de doações sucessivas, o excesso será apurado levando-se em conta todas as doações efetuadas; devendo ser proposta a ação visando a redução no prazo de 5 anos.
Sobre o tema das doações, colação e eventual excesso inoficioso, a redação proposta no PL para o art. 426, que veda categoricamente que seja objeto de contrato a herança de pessoa viva, contrato conhecido como “pacta corvina”, passa a desqualificar como tal os contratos em que herdeiros necessários, descendentes, mesmo que ainda vivo o ascendente comum, disponham sobre diretivas que nortearão a colação de bens, o excesso inoficioso e partilha de participações societárias eventualmente recebidas.
Fica a questão quanto a se o dito ascendente comum faz jus a participar da avença, bem como se, em havendo conflito entre previsões criadas pelo doador ao tempo da liberalidade e previsões criadas na avença comum entre herdeiros, qual há de prevalecer.
- Reversão de doação a favor de terceiro
O PL preserva a possibilidade de o doador estipular que, na falta do donatário, os bens doados voltem ao seu patrimônio, disposição conhecida como cláusula de reversão (art. 547 do Código Civil).
A inovação reside na revogação da regra aposta no parágrafo único do mesmo artigo, que hoje veda a cláusula de reversão em favor de terceiro.
Caso as sugestões atuais passem no Congresso Nacional, ao doador será facultado prever que o ativo doado, na hipótese de falecimento precoce do donatário, reverta em favor de terceiro estranho à operação, independentemente de vínculo de parentesco?
Acreditamos que a resposta a tal questão deva ser considerada também à vista das previsões acerca do fideicomisso, que já foi objeto de nossas considerações anteriormente.
- Direito de acrescer
Um dos dispositivos do Código Civil atual prevê que quando a doação é realizada a mais de uma pessoa, sem menção expressa aos respectivos percentuais, presume-distribuída entre os donatários por igual (art. 551, caput); e, excepcionalmente, sendo os donatários casados entre si, a doação consolida-se integralmente no viúvo, em raciocínio que poderia encontrar paralelo no joint tenancy with rights of survivorship, conceito inerente ao direito anglo saxão. Sobre o instituto, já tivemos a oportunidade de tecer considerações.
Nesta seara, o PL propõe: (i) alterar a regra padrão hoje aplicável aos donatários casados ou conviventes entre si, de modo que o direito de acrescer entre cônjuges somente subsistirá se houver previsão expressa nesse sentido; e (ii) ampliar o direito de acrescer a terceiros, ainda que não casados ou conviventes entre si, contanto que a cláusula de acrescer conste expressamente de escritura pública. Caso entre em vigor, a mudança terá efeitos refletidos nas legislações tributárias estaduais.
- Ampliação hipóteses de cabimento de revogação de doação
De acordo com a sistemática atual, doações podem ser revogadas por ingratidão do donatário ou pela falta de cumprimento do encargo aposto pelo doador, frente ao qual anuiu o donatário. O artigo 557 traz um rol com hipóteses de situações hipotéticas cuja ocorrência legitima o pedido de revogação de doação.
À vista do aumento crescente de discussões nos tribunais que envolviam motivos outros para fundamentar pleitos de revogação, o PL propõe a inclusão de referência expressa à possibilidade de se discutir a revogação de uma doação sempre que surgirem situações de especial gravidade, ainda que não ali discriminadas, tornando lei entendimento jurisprudencial já consolidado[1] de que o rol hoje existente é meramente exemplificativo, sem pretensão de exaurir as situações em que a discussão tem cabimento.
A revogação poderá ser pleiteada dentro do prazo decadencial de 1 ano, e não terá lugar caso a doação tenha contemplado encargo já cumprido pelo donatário, inovando o PL também ao introduzir a vedação à revogação quando há encargo parcialmente cumprido – o que certamente pode, a depender do contexto, despertar um sentimento de injustiça ao doador, já que parte do encargo não o foi.
O PL nº 4/2025 atualmente tramita no Senado Federal. Nosso escritório continuará acompanhando a evolução do tema e comentaremos as atualizações e os desdobramentos relevantes.
Ressaltamos que esse texto não se presta a exaurir todas as mudanças e inovações trazidas pelo PL, mas somente pincelar algumas das que se mostram relevantes para o Direito da Família e das Sucessões. Acompanhem o tema em mais detalhes conosco nas próximas semanas.
[1] STJ, REsp nº 1.593.857/MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 14/6/2016, DJe de 28/6/2016.
*Este conteúdo foi produzido em 03 de abril de 2025.
Adriane Pacheco ([email protected]), Beatriz Martinez ([email protected]), Patricia Villela ([email protected]) e todo time HSA estão à disposição para esclarecer quaisquer dúvidas adicionais relacionadas ao tema, tanto na prevenção de conflitos, como em questões litigiosas. As informações presentes neste conteúdo não devem ser utilizadas para fins de consultoria. Cada caso deve ser analisado de forma individual.